Como foi que fiquei assim?
Os meus sapatos vermelhos eu mesma fiz com os retalhos que encontrei pelas ruas onde vivi. Eram o orgulho, a honra e a sobrevivência dessa pobre menina, durante o inverno.
Um dia vi uma carruagem dourada se aproximando. Ela parou do meu lado e de dentro dela uma velha senhora me convidou para ir com ela. Fui. Acreditei que o que ela me ofereceria seria muito melhor do que o que eu tinha!
Chegando na mansão da velha havia roupas e sapatos novos para mim. Tudo era bege claro. Me troquei e quando me dei conta, ela, a senhora, havia jogado os meus sapatos vermelhos na lareira.
Não deu para salvar nada. Restaram as cinzas. Cinzas e “beges claros”.
Ela quis que eu fizesse a primeira comunhão. Saímos para comprar sapatos novos para este evento tão importante para ela.
Entramos em uma loja onde havia um lindo par de sapatos vermelhos. Era tudo o que eu queria, mas a senhora nunca permitiria. Que que eu fiz? Na hora de embalar, troquei os sapatos beges horrorosos que ela havia comprado para mim, pelos vermelhos. Pronto. Estava feito.
Chegado o grande dia, na hora de entrar na Igreja, pus os meus sapatos vermelhos e entrei triunfante! A Igreja se calou. Em seguida as pessoas começaram a sussurrar coisas infames a meu respeito: “mulher...artista...vagabunda...” Até que alguém que nunca pecou atirou a primeira pedra. Começaram a gritar para que eu saísse dali.
Só que ao invés de correr eu comecei a dançar. Dancei. Linda e poderosa uma dança que só eu poderia dançar. Quanto mais gritavam, mais eu girava, pulava e gostava. Eu não pertencia àquele mundo hipócrita.
Desci a escadaria da Igreja aos saltos e fui dançando por toda a cidade, em cada canto, em cada gueto, livre!
Até que quis parar e vi que não podia. Não mais. Não conseguia mais parar. Eram os sapatos que dançavam agora. Descontrolados. Eu apenas os obedecia. Eles dançaram em direção à floresta, rumo à casa de um carrasco. Pensei ser a minha salvação, pois se ele cortasse as fivelas eu me veria livre dos sapatos! Só que não deu certo. Eu estava grudada neles. A verdade é que eu já pertencia a eles há muito tempo e eu estava exausta.
O carrasco olhou para mim. Ele era forte e cruel, é verdade. Mas era ele quem estava do meu lado.
Eu não tinha escolha. Eu não tive escolha. Ele tinha um machado nas mãos. Foi quando olhei no fundo dos seus olhos e lhe dei uma ordem :
- “CORTA OS MEUS PÉS.”
*livre adaptação que fiz, à partir do livro "Mulheres que Correm com os Lobos", para meu solo "Mulher Selvagem".
foto: Jorge Etecheber